Relacionamentos LGBT no cinema

Shortbus (2006)
Shortbus (2006)

Desafiando velhas soluções

Na primeira parte deste artigo foi proposto pensar como as produções cinematográficas retratam relacionamentos LGBT sob alguns critérios, o objetivo é investigar possibilidades narrativas mais amplas como as que já foram exploradas quando são retratados relacionamentos heterossexuais mas consideravelmente raras ao mostrar relacionamentos envolvendo pessoas LGBT.

Agora, se faz necessário entender as motivações, implicações e limites desses critérios.

  • A história principal acontece em um momento posterior ao começo da relação (não é um filme sobre procurar relacionamentos);

Seja qual for a configuração escolhida (monogâmica, poligâmica, poliamorosa, etc) o personagem LGBT não está buscando ou evitando uma relação. O ponto aqui é não colocar o relacionamento como um ideal que é perseguido ou rejeitado, mas como um fato estabelecido da trama.

Isso é claro, elimina a quase totalidade das comédias românticas que têm foco em um mercado voltado para suprir a crescente demanda por romances gays e lésbicos. Apesar de terem seu lugar na cultura LGBT e considerar que ainda faltam muitas comédias românticas sobre transgêneros e não binários, esse gênero cinematográfico pouco aborda de fato a dinâmica dos relacionamentos, mesmo em seus exemplares convencionais do gênero heterossexual. Em geral, esses filmes tratam da relação amorosa apenas como um objetivo a ser conquistado ao final da história e não uma experiência concreta vivida em seus melhores e piores aspectos, pouco acrescentando ao debate sobre o qual debruçam esses artigos.

  • O relacionamento se mantém ao longo da narrativa (não é um filme sobre términos ou separações);

Desentendimentos, brigas, tédio, angústias e até medo da separação são elementos possíveis, perfeitamente comuns à relacionamentos e partes essenciais de algumas tramas e nenhum deles elimina um filme deste critério. Conflitos que tencionam relacionamentos são elementos narrativos válidos, mas existem uma enorme quantidade deles no cotidiano e na ficção que não resultam no fim da relação.

Se unirmos o personagem típico desafiado pelo primeiro critério (que quase sempre está na busca por um romance) com o do segundo (que já está numa relação, mas sempre na eminência de terminá-la) montamos a figura de uma pessoa que passa a vida buscando relacionamentos ideais e saindo, frustada, destes. Não por acaso um discurso frequentemente reproduzido fora das telas.

Vale ressaltar que a questão não é valorizar a escolha da manutenção de uma relacionamento como sendo melhor que seu término. Em muitos filmes a escolha mais benéfica para saúde mental e física dos protagonistas é terminar a relação, especialmente quando ocorrem relacionamentos abusivos. O que nos leva ao último critério do desafio.

  • Existe uma relação de confiança que não foi quebrada (não é um filme de relacionamento com abuso, traição ou outra forma de engano);

Embora a palavra traição sugira para alguns estritamente a fidelidade sexual monogâmica, não é esse o caso, há muitas formas de quebrar a confiança em um relacionamento: filmes em que um dos envolvidos na relação explora, rouba ou mesmo tenta matar o outro são claros exemplos que não atendem este critério. Se relações monogâmicas são as vítimas óbvias desse clichê cinematográfico, tão pouco as representações de relações polígamas, abertas ou poliamorosas estão isentas de sofrer traições e o cinema não se furta a recorrer a essa solução com frequência em suas histórias.

Se relacionamentos de lésbicas, gays, bissexuais, e transgêneros terminam com tanta frequência no cinema parece uma surpresa que vários protagonistas suportem violência, traições e mentiras para manter suas relações. Mas esse é um destino comum, nas películas, para aqueles que desafiam quebrar o ciclo da busca idealizada e abandono de relacionamentos. Quase uma derivação das duas condições anteriores, é possível encontrar exemplos em que o personagem explicitamente justifica a tolerância do abuso por medo da solidão e de ter de voltar àquele ciclo ilusão-abandono.

Considerações e limitações

A escolha pelo olhar direcionado aos relacionamentos e não aos personagens abandona o foco em diversos outros elementos relevantes da construção individual de personagens LGBT que, no entanto, felizmente já recebem e continuam merecendo outros esforços de natureza semelhante. Os relacionamentos são elementos frequentes e presentes na vida de heterossexuais e pessoas LGBT, permitindo uma comparação dos repertórios escolhidos no cinema para retratar cada um. Além disso, como recentemente comprovam revelações de escritores e atores de que conceberam um determinado personagem como se fosse LGBT apenas depois do filme lançado, como nos casos de J. K. Rowling com Dumbledore e Jonnhy Depp com Jack Sparrow (ambos personagens seriam, ou poderiam ser pensados, como sendo gays), essa informação não tem nenhum impacto direto na narrativa se suas relações não são exploradas no tempo da história.

Uma forma de cumprir esse desafio sem acrescentar muito valor a narrativa é usar a função de “casal ideal”, quase sempre coadjuvantes de poucas falas que servem também à uma idealização pelos protagonistas, seja como exemplo a ser seguido ou desconstruído. Esses casos sofrem da mesma superficialidade de personagens LGBT sem relacionamento e raramente possuem vida própria. Embora seja uma solução preguiçosa ainda está longe de ser uma solução tão exaustivamente usada quanto o casal ideal em sua versão heterossexual, aliás esses últimos aparecem como amigos conselheiros tantos para protagonistas heterossexuais quanto em filmes protagonizados por gays, lésbicas ou transgêneros.

Um elemento que não descarta necessariamente um filme desse desafio, mas surpreende por um número expressivo de casos são os filmes em que ocorre a morte de um dos membros da relação. Isso é um fenômeno curioso, pois temos novamente um protagonista lidando com a figura fantasmática de um casal ideal embora neste caso tenha sido ele/a mesmo/a que tenha participado.

Ao contrário do que possa sugerir uma leitura apressada, os critérios desse desafio não garantem um final feliz, nem tão pouco personagens heroicos ou bem comportados (de acordo com as convenções sociais ou sexuais).  Essas características são apenas limitadas pela criatividade dos que se propõem a contar histórias. Para pensar possibilidades de lugares novos para narrativas LGBT ocuparem precisamos primeiro compreender certos lugares comuns, resta começar a pensar quais novos caminhos podem ser explorados, mas esse será assunto de um dos próximos artigos.

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